21 de abril de 2007

Anos "60"


Era o mundo dos meus verdes anos
em que tinha a cabeça adolescente
despenteada, externa e internamente.
Naqueles tempos não havia veteranos...

Encheu-se de música o meu mundo:
de sonhos musicais a minha cabeça
penteou-se com um risco profundo.
Marcas ficaram, ninguém se esqueça!

Hoje, alguém passa e questiona
esses valores e o seu significado,
duvidando se na História ficou brado.

Tirando o alecrim e a mangerona
das tais politicalhas prepotentes,
foram os sessenta dos mais inteligentes!

Voz Minha


Oh! Voz minha não te cales,
pelo ardor do meu coração!
Que sejas Lança, sempre fales
- que me ilumines a escuridão!

De volta ao tempo clandestino,
voltou a "apagada e vil tristeza";
resta-me só a Lança da Pureza:
este puro coração de menino...

Já que a chama se apagou,
nesta jornada discreto vou,
e sigo à sombra dos anões...

Ficando nas trevas os dias,
fúteis vaidades e honrarias,
chegue a Lança aos corações!

O Silêncio Da Razão


A Razão resistindo, a sair
da ponta da caneta, do tinteiro,
guardada pelos anos, em silêncio,
clausurando erudições,
inibindo erupções...

A Razão, sempre A Razão,
aquela que nos disse não,
sempre em silêncio, calada,
mordendo-nos a alma por nada,
em tudo o que o fogo urgia...

Oh! mas se a vida se fazia
com vozes e fogo se ardia
deixando sozinha falando
lá dentro a Razão ignorando...

...com gosto Ela se calava
- e satisfeita se calou,
por todos anos em que amou
enquanto quieta ficava!...

20 de abril de 2007

O Que Sou?


o que sou
e o que faço
onde estou
e o que penso

tudo o que nas mãos reúno
que digas pouco o que apresento
seja porque o esparso pelo vento
ou que dissolvo nas águas em que o afundo

pouco ou muito
seja eu louco
cheio de amor e razão

faça amor, faça loucuras
tanto faça
que não haja taça!

18 de abril de 2007

Para Parte Incerta


Encobre-se o céu, por vezes, de negrumes;
levantando brumas, queixumes...

Descobre-se a Vida,
escapa-se-nos o vento,
o sopro, neste barro cinzento...

O que nos prenderia aos braços
do embondeiro forte
se as raízes largas
da vida se soltam
pelo espaço incerto?

Condição De Bardo


junto a bravura na luta
de um coração celta
em peito de gaivota
à doçura de um homem do sul
na paixão pela sua amada...

entre a rudeza do sangue
e a brandura do amor,
a minha condição de contrárias forças
me conduz por caminhos, ermos...

de montes e pedras,
sobre vales e rios,
sob sopradas nuvens
de molhados gelos
ou repentinos frios...

e se faço uma pausa na caminhada
é para ouvir o silvo do vento;

porque Ele é como a música
que me penteia os neurónios,
e é ela que me diz
para onde devo seguir.

13 de abril de 2007

dúvidas


Se deixasses o sonho
correr ao longo das ruas,

Se soltasses a corrente
das águas
pelas nossas dúvidas.

Por que não?
(Diria eu),
Diria.

Manifesto


é preciso que saibas
que de nada nos serve
lançar o grito no vácuo
do vento vazio.

levantar na poeira densa
das nuvens ocas
as palavras descaídas.

por outro lado podemos
gritar serenos e atirar
calados as pedras polidas.

é preciso que eu saiba
também romper as cadeias
do silêncio de ontem.

Genesis


...e começar
arrancando da vida
a vida.

começar a rasgar
os pedaços das velhas
correntes,
e lançar pelo espaço
à volta só ida,

o abraço solto
da vida.

apagar os traços
reunir as palavras
traçadas.

a palavra de aço
o traço
sem volta.

apagar aqui os sulcos
pisados,
terminar aqui
a pré-história.

Debater


se te soltas
os braços cruzados
folgarei a sede
dos teus sulcos
debatidos.

ter-me-ás
seladas as feridas,
fendidas as folhas
do muro desespero.

olhos (meus)


olhos quando cinzentos
vistos em limpa claridade
fulgores de manhã clara.

na sombra, ou apagada luz
mais ainda cinzentos os vês,
toldados.

ainda que.

Outubro Em Quatro Andamentos


1.(desalentoso)
é o tempo das águas, feridas abertas
paradas nas fendas partidas
fechadas as pontes e os sopros.

2.(raivoso)
é o tempo das pedras, fechadas, de fendas paradas
é a água do tempo partido, ferido
nas pontes guardadas dos sopros podres.

3.(esperançoso)
é o tempo das pedras das águas perdidas, das pontes.
é a água das fontes
das pedras partidas.

4.(certo)
aberta a sede
no granito solto da vontade,

aguarda a filha madura
da verdade.

25/IV/74


Era o triste traço dos trevos
era o travo das trevas
era a trégua das trovas.

Trouxémos os troncos as tranças
as traves as trovas do trigo,

e tragámos as trevas.

Ao Som Do Zeca Afonso


("Era Um Redondo Vocábulo")


uma sombra brilha ao sol
como uma velha à porta de uma vida;
uma faca no beiral
da minha porta espreita-se no mal;
uma seiva raiva e tal
na minha barca há uma salva-vidas;
uma calma feita sal
aqui e além estreita a minha mão.

uma farpa na dorsal
cair ao fogo dente e navalha;
uma espinha horizontal
no teu cadáver a tua mortalha;
uma casa a pedra e cal uma selva no quintal
na minha terra há muitas muralhas;
viva a linha vertical
pelo peixe podre ao sol
às dentadas no pernil uma farsa eleitoral
por trás da guerra está toda a canalha.

um canário em festival, uma praga em futebol
duas cores no pincel cor de anil e tudo azul
dois licores no tonel um cantil pró animal
caracol pelo funil e um anzol lá no choupal
infantil até ter mel o frontal é mui gentil
duas manchas no lençol viva o abril em portugal

No País Das Trepadeiras


a casca da crosta a capa da côdea
o envólucro da embalagem a superfície
da aparência parecem o que aparecem
(mas o que importa é o miolo)

a armadura da muralha; o escudo
da parede, muro feito carapaça;
os chifres do capacete as unhas
do cassetete garras e dentes
eles dizem "defesas do essencial"

a espada-canhão a lança-foguete
o punho-granada - armas do medo.

da "protecção" à agressão
da "defesa" ao ataque é um passo.

o que trepa no trono tem a trela na tropa
tem um trajo tribal e uma tromba trocista.
Além disso, uma trama de tretas um traste de tricas
um truque de trocos um trote de tripas.

Enfim,
é um trapo, é um treco, é uma trampa.

Tragicomédia


Cardumes de ovelhas
Bandos de peixes mascarados
Cáfilas de lobos disfarçados
Alcateias de dentes de cera

(estava eu acordado e observava estes brutos)

macacos imitam macacos
uns de "smoking", outros de fraque,
manobram cordéis dourados e cartolas com macacos;
e os bolsos dos símios fraques não têm fundo;
e as bolsas dos simples fracos não têm fundos.

(quando os fracos forem fortes que acontecerá aos macacos?)

e assim, convencidos os Doutores - estatísticamente, claro! -
de ser o cérebro inútil apêndice,
os encéfalos, depois de extirpados por Eminentes Cirurgiões,
foram numerados e arquivados. Tudo o que resta
do primitivo "homo stupidens" são ocas
cabeças com chapas de matrícula.

E reina em todo o País
a mais plena ecologia das carcaças.

A Bem da Nação.

Terra De Ninguém


estradas corridas sem tempo de vida
criadas a ferro estradas da morte

estados de plasma em cristal amarelo
imagens falhadas numa estupidez pensante

fios de aço telhas de pedra
terra de pó sabor a sal pregos a mais

barcos à vela na areia
dos desertos escravos do vidro

tinta da boca língua de barro
dentes de osso pés de camelo

Oh! Oboés de papel
sois pontos de exclamação.

Ainda Guernica


Na geométrica lógica das facas,
no apenas blindado mundo,
aperta-se o cerco ao vigiado espaço
pelas pontas de águia, pelo aço
de estrelas-não-estrelas
estradas sinistras e faixas
de sangue em riso atroz
de metralha;

Há fogo que enlouquece
há labaredas sangrando
carvão de carne afogada
em petróleo, em armamento,
no furacão das marés de chumbo.

Havemos, como quem tem mil cabeças,
de inventar a coragem, a couraça
de agir agora gritar
as não-palavras sufocadas teimar, querer:
existir em liberdade
dizer sim ao projecto,
não ter paredes nem tecto
nem chão nem muros nem fundo,
crescer.

o ar que nos falta


o ar que nos falta
o ser que nos dói
a chama que nos inflama
a paixão que nos corrói

e se nos faltar a figura
do fulgor e da amargura

sempre a alma nos segura

Quantas Folhas?


Quantas folhas,
filhas do tempo, desfiam
as lembranças esperadas?

Quantos fios,
fados do amor desfiado,
desafiam esperanças?

Quais e quantas?
Tantas malhas,
minhas falhas.

12 de abril de 2007

O Que De Livre Resiste?


O que de livre resiste,
sendo livre por inteiro,
neste Mundo que desiste
de ser justo e verdadeiro?

O que de puro nos resta,
muito pouco já sobeja;
n'outra Vida - que não nesta -
um pouco mais, se deseja.

Vamos assim resistindo,
assim cá vamos fugindo
da nossa própria Razão.

Vivendo sem a Verdade,
em ilusão de liberdade,
que nos salve o Coração!

esperanças...


No tempo em que os Caprandandas
andavam sempre em bolandas,
de terra em terra procurando
e ao Eldorado nunca chegando...

Num tempo já tão distante
vivia meu coração ofegante,
cruzando mares sem espanto,
sem estrela Polar nem manto...

Vidas de antanho, que o não foram
- que neste desenho não moram:
em funda tristeza morreram.

Por mortes se foram, tornadas
em fortes vidas renovadas,
esperanças novas nasceram!

amor


amor
palavra doce ou salgada
conforme ao desejo e à paixão
conforme à vida
ou à loucura da razão

amor
palavra quente ou fresca
amiga da sede
das bocas amargas
palavra forte em lábios tenros

amar
voar, voar,
por todos os perigos
- sentido dos sentidos -
entregue aos braços amigos
do amor.

11 de abril de 2007

Meio


Meio não é boa palavra.
O esteio da minha lavra
não devia tê-la...
...de permeio!
(Acho que vou devolvê-la,
com muito asseio...)

Sinto que é feio,
anti-poético,
patético,
e até creio
ser termo meio... presumido,
em futurologias convencido,
pois que ao se terminar
o Fim virá anunciar!

Isso é chantagem, eu acho!
O Meio, assim? Abaixo!

Se Me Aperta A Alma


Se me aperta a alma
se a voz me falta
se não tenho calma...

Breve, o meu peito, para tanto;
curto, o meu passo, de espanto;
longo e deserto, o meu pranto...

voz que me falta,
voz que me aperta;

que se desdobre o peito,
que lhe descubra o jeito!

Princípio


Quando meia vida se gastou
para saber o coração por onde andou:
do corpo saído,
afastado da razão
- da vida dos passos -
ao lado dos lados perdidos;

encontrados os sentidos
de tantas vidas
de tanta imaginação,
agora sabido onde se ancora,
onde ele mora
(o meu estranho coração...);

começa o encontro,
o conhecimento;
dos corpos e da mente,
do espírito e da razão;

começo Eu,
acabando com a separação!

Noite Pessoana


preso a estas lamas,
a estas cinzas de império
roto e decadente

às vilezas verdes
de um hálito podre
e execrável;

neste final de noite
me arrasto
acabado quase
acabando por nunca me completar

Sonha


a medida
das coisas, dos olhares,
deixados sobre magoados passados,
venenos, amarguras perenes,
ódios mesquinhos,
desmedidos...

sob a medida
de todas as coisas, por amares,
optados sobre rasgados passados,
no fel dos dias sem grandeza,
da mente pequena
enfrentando a frieza;

pela medida
supra todas as coisas,
o Amor de te encontrares
Livre, do fel, da peçonha,
sonha, sonha, sonha!

Peça


ser uma peça do sistema

da máquina trituradora

ainda resta alguma consciência

ainda nos resta

entre o ruído, o resto das mãos

o gesto do afago, sobre imagens

de rostos, pétalas de rosas

nos cartazes

da publicidade

Dissociação Sentimental


Recordo os tempos em que tocava o teu manto de pétalas frágeis
- então falávamos pelos poros e pelos dedos,
então tudo em nós era linguagem de amor;

Algo na ferrugem do tempo se passou
- talvez as nossas vozes oxidando,
transformando doçuras em timbres metálicos;

Não mais ouviste as cordas do meu violão
gemendo, a guitarra do meu sangue,
ignorada a lira, silenciada de tristeza...

Hoje, minha latejante e cheirosa nudez
passa pelos teus implacáveis olhos,
indiferentes à chama...

Distante dos teus ouvidos,
esgueiro-me por brechas de azedume,
procuro lançar por tortuosas vias
de outros pavilhões auriculares
esta voz que se deixou perder em sussurros...

Já não mais síncronos, aurículas e ventrículos,
antes apenas dissonantes,
depois agora já bloqueados,
oh! - os corações - dissociados...

De Sangue E Carne


de sangue e carne
são feitos os meus versos;

não julgues que de ofício
fingidor os imagino;

sofrimento, sem artifício,
lágrimas perdidas,
em silêncio
explodido

e se venho aqui chorar,
é porque nenhum ombro ali fora me aguarda...

por isso, meu amigo, deixa-me sair,
correr ao meu amado deserto e gritar

10 de abril de 2007

Se Tu Quisesses


se me quiseres procurar
não vás à cidade perdida,
lá andam muitos, perdidos,
em multidão, mas eu não;
lá não me encontrarias...

se me quisesses encontrar,
procurarias onde andasses
também perdida, sem norte,
como eu, à sorte,
dos dias sem sentido...

sentirias como eu,
seguirias sem destino,
procurando-me,
encontrarias.

Não Calarei


Não calarei o asco
pela peçonha de tamanho visco.

É tal a façanha, tal a manha,
que a náusea e o nojo
deste País fez um despojo,
envenena o ar,
a água e o pão,
a língua e o coração.

Não calarei, não calarei!

Exortação À Coragem


que as lentas forças
macias, crescidas
nos caulinos argilosos

em doces branduras,
à sombra de brisas calmas

de tanta calma
tanta maresia aspirada
à beira de falésias

de tanta hesitação
tanta espera inacabada,
que seja agora a hora
em que venha o trovão
e que ele fale

que tudo rebente
e não se cale, que tudo se lave
com o que tanto chova
e que com o imenso vento
ninguém se atreva,
ninguém se mova!

Que acabe a treva, que acabe a treva!

Manhã


Saio para a manhã e bebo o ar
fresco, vivo, leve
caminho sobre os passos;

alimento-me de asas,
aspiro a pureza;

levo vida nos olhos,
na alma;

vôo, devagar,
sorvendo as brisas,
bebendo as águas
em que respiro.

Tentação


Deitada estavas em repouso,
reluzente em tua pele de ébano.

Enovelaram-se ideias
na tua imagem;
deixando teu corpo
intocado.

Sem suspeita da minha tentação,
teu sono segue puro.

Também eu sigo,
livre de impuras ideias...

Quando?


quando,
como num tango,
me lo haces...
me da ganas
de trair-te!...

quando,
como num tango,
golpeas mi alma
hasta la sangre...
me da ganas
de llorar...

quando,
como num tango,
me lo dices...
me quedo triste...

amor, quando
lo tango bailaremos ?

Sempre No Final


sempre no final,
adiado,
das caminhadas,
sempre no terminal
de longas estradas,
sempre arrastando penas
e cansaços arrastados
nos poucos passos
que tão poucos, afinal,
foram dados,
nesta viagem,
de jornadas sem sentido,
que destino seguimos
meu Deus, que fim?

Ai!


ai!

que em meu socorro
as musas corram!

que as palavras me bastem
ao consolo...

(que viessem
aos cabelos em desalinho,
ao magoado peito,
às pesadas pernas,
já sem jeito...)

afogam-me as mágoas,
esbracejo em desespero;

acudi-me, poesia -
levai-me nas tuas asas!

Nos Restos Desta Noite


nos restos desta noite,
no princípio da manhã,
queria ver o alvor
do teu desejo
sobre o meu
banal corpo
derramar-se
como um líquido nascente

Ventos Do Norte


ventos do norte
a esta praia me trouxeram

pelos séculos
sobre esta falésia polida
olho para o mar, para ti

ondas sobre ondas,
dobrando-se em verdes,
em espumas e brilhos

em maresias por ti
os meus olhos
e este coração pisado
ouvindo o mar calmo...

estás presente,
mas é ao mar que pergunto
qual é o nosso caminho

...

respondeu-me o vento
que o mar lhe dissera
seguissemos o caminho
do nosso amor

Ainda Sobre...


Ainda sobre todos os amores,
ainda sobre todas as vidas,
sobre o mundo dos amores,
sobre amar, ter despedidas:

Venham poetas, venham sábios,
venham os doutores de vidas,
escritores, profetas, visionários
(fossem as mentes tão sabidas...).

Que nas pedras se sentem,
que nelas fiquem, sentados:
suportando a monotonia;

amando o silêncio, fiquem,
ficando na ausência, parados:
esperando a Sabedoria...

Amor, Estranha Palavra


tanto nos disse
o primeiro ar ao nascer

tanto nos disse o colo,
as mãos da mãe;

tanto falou o chão às nossas,
mãos gatinhando, antes dos pés
sentindo, os torrões
ou planos alisados

tanto nos disseram
bancos de várias cores,
formas e densidades;

tanto as paredes
esfolando os dedos nos disseram

tanto os muros
aos joelhos nos falaram

tanto as pedras dos caminhos
aos dedos dos pés doeram...

Sobre o Amor,
essa estranha palavra,
tudo nos disse a Vida.

Shopping Center


Chorei os meus verdes anos:
e se era livre então;
a vida, como a poesia.

Nas ruas, como se cantava!

Cantaram os pobres,
ricos de flores, de canções;
novas flores apanhadas.

Quantas vendas foram nossas?

Hoje, de novo são tristes
as ruas, as casas
cinzentas de todas as cores.

Fragilidades


Hoje revi-te naquele filme antigo;
com um baque no coração,
vi-te, de novo menina, delicada, linda.

Desses tempos da nossa vida,
imagens como leves marcas sobre a areia,
que as secas, as chuvas e os ventos
afinal não chegaram para apagar...

Tão distantes,
desligadas da memória,
simultaneamente doces e penosas;

Se pelas imagens soubéssemos o que os dois éramos,
antes da vida sobre nós ter desabado,
em cujo percurso a memória se esqueceu...

Tão frágeis éramos, na nossa mocidade;
tão náufragos naquele mundo, já perdidos,
nas ilusões em que sonhávamos partir,
já no dia seguinte.

Em que momento, e porquê, os nossos doces olhares
ter-se-ão perdido pelos caminhos?

Ou apenas, por momentos dilatados,
ocupados, não por doçuras, mas por fados,
por quanto tempo nossos olhares terão seguido outros caminhos,
perdidos um do outro?

Éramos frágeis. A nossa pureza foi frágil.
Hoje, não sei como chamar a esta nossa força de amar.

Mas, depois de endurecido pelos anos,
ao rever o teu lindo rosto,
sorrindo para mim,
como ainda me sinto frágil!

Como ainda sinto a paixão,
como ainda sinto
que outra não poderia ter sido a minha vida!

Modernidade


Falam de modernidade:
das novidades técnicas,
de que falam com vaidade
- das tecnologias estéticas...

Tanto falam, na verdade;
repetindo, quase acredito;
esquecendo a humanidade,
"Que moderno sou!" - repito.

Em botões vou carregando,
a ansiedade despejando
num omnipresente teclado,

pouco a pouco mais calado.
Neste mundo tão infame,
onde a Catedral de Nôtre Dame?

Na Noite


Nesta noite igual a tantas,
de solitários silêncios e cansaços,
vejo espalharem-se dos dias os pedaços
das misérias... Sim! - do que te espantas?

Nesta noite não há fados não há tangos,
calaram-se as doces vozes dos fandangos,
longe ressoam as toadas,
pelos soluços abafadas...

Vais pela garoa meu amigo,
vem buscar no braço o teu abrigo,
- que antes solucem as musas nocturnas!

Afinam-se gargantas pelas furnas,
na escuridão há quem se afoite
e sem medo cante até de noite!

Amar


desesperado amor
que segue perdido
por vielas e becos infinitos

esperança sempre adiada
e negada lá mais à frente
da espera do que sempre
sempre espera

desesperado,
cansado, resiste o amor
por vielas e becos,
infinito.

Em Branco Frio


em branco frio se ofusca
solidão de alma, a minha, ardente
e sozinha;

na palidez fria se enrosca
a tristeza calma e sozinha, paciente
que é a minha;

no breve estio,
sigo mirrado rio,
pálido e tosco;

a nudez que dizes,
algidez de escassas matizes,
ausência de mim, na brancura de páginas soltas...

Ponta Da Europa


Nesta europeia Califórnia,
à beira, Atlântica,
falsamente pacífica,
equivocamente virada
a ocidente, geográfica,
mais no beco que no extremo,
entre discursos e recursos,
partidocraticamente democrática,
vencidos na memória de ontem,
hoje perdidos na história,
pacóvios de todas as modas,
entenderemos qual o percurso deste Hotel?

Nesta nova apagada e vil tristeza,
virá alguém que nos diga como dela sair,
como construir
uma nova utopia?

Onde Estou?


aqui,
onde tudo se esconde;

se esconde a maré,
se esconde a maresia

esconde-se a pureza,
esconde-se a poesia.

Re-explanada


Explanemos o tema, explanemos;
expliquemos tudo, explicaremos?
Algo haverá aqui de inexplicável,
nesta esplanada tão apetecível?

Tivéssemos tudo tão controlável,
nada seria tão cedo descartável;
consolado ficasse o esplanante,
já ninguém ficaria suplicante!

Suplícios ou folguedos ao acaso,
(ainda bem que aí vem o ocaso,
após a penumbra, venha o escuro!)

que aqui o gerente, recto e puro,
não mais veja qualquer devassidão.
Ou também terei de "dar uma mão"?

Esplanada, Versão Feminina


Ufanava-se, outro dia, a Bela,
estando à mesa instalada,
comendo tenra torrada,
de assistir a parada bela.

Menos a boca que as vistas,
tanto se encheu de ciclistas,
qual teria maior pedalada;
vá, mais um naco de torrada...

Tão esbeltos eram os rapazes,
tão velozes nas bicicletas;
fantasiava que eram capazes
das mais loucas piruetas...

Cintura fina, pernas musculadas;
se os moços lhe deram fome!
Aperitivos p'rás esplanadas?
Já vi darem-lhe outro nome!

Esplanada


À esplanada se senta, e não me dá hipótese!
meu irmão Valério, de hipotenusa armado;
secando o material que passa, bem dissecado,
tirando-lhe a secante, fazendo sua a apoteose!

Bem queria eu ter a sua disponibilidade,
e a demorada gestão das tardes solarengas;
logo veriam também minha aritmeticidade
ausente de lúbricas algébricas monstrengas...

Os catetos dobraria, em quadrados,
semifusas confusas, por quartetos,
gritaria bravatas, ninharias baratas;

Minhas fossem todas as passeatas,
nunca na mesa faltariam canecas,
poderíamos ficar, até sermos carecas!

Queria Ter Nos Meus Versos


queria ter nos meus versos
a água da chuva
ou a das lágrimas puras
como as do meu filho

e queria ver as folhas dos plátanos
caidas nos lados do caminho
como se tivesse todos os poemas em folhas
nos bolsos da minha bata

e tu poderias seguir ao meu lado
em silêncio, se quisesses
ou dizendo-me orvalhos

Modernidade


convoquem-se as palavras inibidas
tragam-se-lhes os nomes aos dias de hoje

é abrir os alçapões da memória
e relembrar outras palavras, desinibidas

o que ontem as soltava,
lhes dava possibilidades de asas de sonho?

se, na verdade, pouco mudou,
não deixaram aquelas de ser novas
palavras, futuro antecipado,
o desejo empurrando o pensamento.

Se queres ser moderno,
convoca à tua vida o desejo mais antigo

De Novo O Poema


nos afluentes das lágrimas
o encontro, o enlace,
de novo a partida,
a subida do amor

o choro da vida, o abraço,
de novo o poema,
de novo a estrada
dos abraços afluentes

num mesmo rio águas
que de novo seguem
mágoas que se lavam,
sedes que se levam

às fontes
do poema novo

De Uma Janela De S. Lázaro


( lembrando Cesário Verde )


Lisboa chovida,
bebidas as tuas calçadas,
deslizas nos trilhos dos teus eléctricos,
sorvendo salgada humidade
pelas narinas, mouras.

Lisboa deitada
- decúbito lateral de preguiça -
apoias nos braços a face
e aos olhos te ofereces
as ancas e as costas, nuas.

Lisboa marga de sabores,
de encostas dobradas,
fadadas de morrer chorando
alegrias e tristezas.

Leveza


Hoje, que me sinto mais leve,
mais seguro,
de mim, de ti, de nós;

Hoje, que me solto mais leve,
mais livre,
mais preso, a ti, a mim;

Hoje que me vejo
de novo
a soltar o sabor antigo
da poesia na ponta dos dedos

Perguntas


( a Eugénio de Andrade )


tenho a sangrar-me dos braços
as palavras que me atiro:
em que medida te suspendo
no tempo de me ouvires?

tenho caladas na boca
as perguntas que me faço:
em que palavra estou,
onde fiquei agarrado
às pedras do teu assombro?

tenho nas mãos
o papel com que me firo:
será o breve de um grito
o susto que me acorde?

Na Torre


Arriscamos o perigo
de se estar no risco
fazer aresta
tornar arisca
a verdade

o perigo
de estar nesta torre

livre
nesta cidade
a muralha
de pedras brancas

o perigo arriscado
de estar arisco
e vivo.

Retorno


Mergulhado em teus braços
trago-te o beijo
leve dos meus dedos.

mergulhado em teus lábios
tens-me a romper
o fogo da tua boca.

mergulhado em teu corpo
acendo-te o ventre
de manhãs claras.

Nós


Tu e eu
duas papoilas matinais
festejadas em sabor do nosso espanto

tu e eu
amados em espuma
largámos as águas da nossa espera

tu e eu
nos claros dias
ardemos em brilho de fogos

tu és a rapariga
o trigo
a mulher do meu canto companheiro

tu és o meu peito
o meu grito
o amor do meu braço verdadeiro

Corpos


Teu corpo é arco
na ponta dos meus dedos
três leves polpas
na flor da minha mão
com que inflamo a manhã
no teu ventre.

mergulhado
nos teus braços
envolto em lábios,
em perfume.

em beijos,
na água do teu pescoço
brando de rosas
nos bicos doces
no peito leve.

Quando somos amor
nossos corpos são arcos

Todos Os Dias


Quero fazer-te um poema
que seja como eu te vejo
todos os dias

que seja como fazer-te crescer
com o meu amor
todos os dias
que seja como fazer-te um filho,
fazer amor
todos os dias

que seja como eu te faço
meu amor
todos os dias
que seja como o que me faço
por ti, meu amor
melhor,
todos os dias

eu só queria fazer um poema:

este amor

todos os dias.

Jogo


Se a Paz procuras num tabuleiro,
verde ele seja ou seja axadrezado,
o adversário, que é o teu parceiro,
amá-lo saibas, nesse jogo jogado.

Que ele também a Paz procure,
no jogar que contigo enfrente;
juntos, sempre o final se segure,
qualquer o resultado, finalmente.

Chamem-no uns, gritando, Vitória,
outros gritem, digam-se em Glória,
todos, por fim, o mesmo querem;

Todos com Amor jogar souberem,
eis que a Taça da Paz alcançaremos,
e que o Jogo Da Vida ganharemos!

análises...


Arrastado pela orelha
p'ràs análises hoje fui;
dizia a cantiga já velha:
velha torre também rui...

A agulha veio, fiz-lhe caretas,
adiar mais não poude, este dia;
dei sangue p'as maquinetas,
p'ra saber o que não queria...

Veio o veredicto, malvado:
acabando com o docinho,
proibindo o bem molhado;
terei de passar a fradinho?!!!...

asas da memória...


Do "bem-te-vi" ressoa o grito,
espalhado te vi, pelo campo;
saudades de coração aflito,
relembradas por seu canto.

Em verdes planuras alagadas,
em que se reflecte oblíqua luz,
nascem crepusculares pegadas;
ao que a memória se reduz!

Das asas soltando as penas,
lembranças, glórias pequenas,
voos de ocasos, ocasiões;

Crescidos os olhos da vida,
na consciência percebida,
tempos idos, sem paixões!

"O Despertar Dos Mágicos"


De magia no Hotel se falava,
despertava nova, a filosofia;
filosofando, o poeta magicava,
se, versejando, despertaria.

Fora "Dos Mágicos O Despertar",
n'outros tempos, rica leitura;
passaram-se os anos a sonhar,
modificando-se a partitura...

Novas músicas soaram, mágicas,
soam torpezas novas, trágicas,
dos novos tempos de bruteza;

Trouxesse o filosofar certeza,
trazendo a Paz aos Humanos,
bela seria a Magia, dos mil anos!

Por Companhia


Por companhia O temos
na vida, em todos os dias.
Bem seguros seguiremos,
se o crês, Nele confias.

No destino confiantes,
por Ele acompanhados;
tranquilos caminhantes,
seguimos abençoados.

Traz sereno o coração,
com bondade e razão
- assim seja a tua Vida.

A Alma te seja querida,
que nela sempre seja dia.
Ele virá, por companhia!

Vidas


Tanto pode humana alma:
odiar sem fim, amor eterno,
violentar, beijar com calma,
diferenças verão-inverno...

Em leque tudo se espalha,
opções de vida espelhando;
com ou sem razão se talha
o destino se formatando...

Todos na escolha nos fazemos
simples ou não, nos construimos,
caminhantes de alma decidida;

Humanas vidas, diversidade,
plenas de complexidade,
diversas formas da Vida.

choro...


Muito chora quem nos ama,
desejando-nos ditosa a Vida;
entretece o destino a trama,
na lama sofre a Alma querida...

...

Perdoai-me esta secura,
esquecei a amargura;
são coisas de coração mole,
amanhã regressa o sol...

Água mole em pedra dura,
bem triste ficou esta figura;
deixá-lo, se hoje chora,
pedra não se deteriora!

Viva o Amigo que nos atura,
tanto bate até que fura;
tanto choro vá distante
mesmo pouco, já bastante!

Vida


Sabei vós o que é estar
ai, sozinho, na solidão;
sabei vós o que é chorar
ai, sozinho, na indecisão.

Molhado ou seco esse choro,
conforme ao caudal da nascente;
vinde e sabei, não vos imploro:
chorai também, simplesmente.

Sem pressa, para o poente,
tão simples a Vida nos corre:
como o choro, também morre.

E se tudo seca, finalmente,
consumando-se o destinado:
vivamos pois, de coração amado!

No Nosso Dia


Como posso manter de mim
a fronteira luminosa,
a identidade dos horizontes puros,
neste sórdido Mundo,
nesta lama de vileza?

Como posso manter em mim
um pássaro livre no peito
cantando alegrias de amor,
voando pelas Fantasias?

Como posso, (como quero)
abrir-te a fala, aos meus olhos
sonhar a Vida dos teus filhos,
desesperando por te ver,
límpida e serena?

Como,
dizes-me sorrindo,
silenciosa e frágil.

pelas horas...


pelas horas mais cansadas
se arrastam meus lentos dedos
agora roxos, na pele da tua ausência,
imaginando teus cabelos
vendo-te os lábios, de olhos cerrados.

se nos afasta a presença
mais juntos separados estamos
mais forte a vontade se ergue
fraca força de partir, não sair
fechar os braços, mãos abertas
sobre tua imagem densa,
prendê-la no meu nevoeiro.

penosos passos
os que dou nesta madrugada
tensa, discreta e bruta

Poema Da Oferta E Da Procura


poesia
é inutilidade,
imaterialidade pura

preciosa pedra
em todos os mercados perseguida

pontiaguda ou polida,
oferta sempre negada
a cada poeta que a procura

anos passados


anos passados, décadas,
mantém-se a música que respiras,
puro ar, olhar
amplo e horizontal
como o dos claros dias

as folhas e os ramos
contemplas,
povoando a tua árvore

sentes o profundo sentido
das gerações,
a paternidade e a filiação;

mas se te subvertem os valores
passando do natural ao sobrevivido,
nas pressões e pulsões de metas
materiais, da carreira, estatuto e consumo...

se a tua cidade se povoa de urbanos sons,
amarelecendo os alfarrábios vegetais

se sob as comerciais luzes
as almas permanecem ocultas,
pela luminosa e opaca cortina,

se vez o teu solo construido sobre as húmidas lamas,
sobre os cimentos e empedrados,
sobre o betão e o alcatrão...

procura no deserto a fonte do teu coração.

hoje


hoje,
que renasce o sopro imaterial,
sulcando os ares,
invisível e permanente,

hoje para o céu se erguem olhares,
às águas limpas da nossa memória,
oculta no esquecimento dos dias.

órfão de crença ou fiel sem igreja, segues
de mãos vazias, de coração fundeado
no teu peito, porto
de todos gritos e afagos.

Quem, hoje,
me faz indagar todas as manhãs?...

9 de abril de 2007

eu que de mim...


eu que de mim nada dizia
vagueia-me a alma, algures
entre montanhas distantes, Machu-Pichu e Lassa...

nossos avós celtas já o sabiam
quando à sombra dos carvalhos
suas flautas soavam
voando os espíritos para Stonehenge...

Oh! Grande Cartago, aqui até onde se espraiou tua grandeza
de onde minha alma brotou,
de onde saiu em perdida navegação pela América...

Pablo, meu irmão chileno
tu bem o soubeste
guiar o teu divino sopro pelos desertos
e montanhas geladas.

Tu e eu, solitários,
fazemos deste ofício das palavras
o nosso destino e oriente.

Leva-me pela mão, ensina-me
a tua força - aquela na música dos teus versos,
a voz dos teus antepassados.

E mesmo que jamais renascer se possa
- a Atlântida,
ficaremos pelos eternos tempos vigiados
pelos ares e alturas da cordilheira,
com olhos de gigantes e almas de crianças,
vigiando os tropeções humanos,
as misérias do abandono.

Homem que te deixaste
à sede e fome a tua alma,
humano ser nos Pampas perdido...

longe de tudo e de ti...

Homem, regressa-te a casa,
ao regaço da Mãe Natureza, anda
ouvir a voz das aves...
e deixa voar o teu espírito,
leve de riquezas, livre.

( a Vieira da Silva )


a resposta necessária procurei-a
na clara massa líquida do largo rio,
sobre o mar obscuro e inquieto,
sobre ansiosas ondas,
como eu sôfregas de verdade.

( estavam prontas a medir forças
submergindo rochas de desprezo
ou submetendo-se em espumas )

nesse lento desfiar de esculturas vivas,
ao longe uma réstea de luz
o som fino de flauta, longa sobre a costa,
em brilho de oiro antigo,
espantoso brilho.

súbitos tons de verde das águas,
em mágoa eloquente, silêncio enrouquecido,
ferindo os sentidos e os pensares.

( mundos paralelos, insuspeitos e estanques,
de hermética linguagem... )

trama de cabos e mastros, traços fortes
rodeados desse azul, deste verde,
profundidades em solene silêncio.

naquelas telas plenas de líquidos vapores,
onde no mar se confundem águas e nuvens,
claridades, esbatidos abertos,
fruindo olhares e respirações,
exalando os sons
de encantatórios mistérios

marginal


aquela era a aridez, a avidez
de todos os desertos:

um 'maple' comunitário no cais das colunas,
verde bandeira virado a ocidente,
com vista sobre as águas,
mesmo que toldadas e infectas, com taínhas,
verde rasgado, vertido à imagem
da margem de Almada.

Lisboa terra de todos os sonhos
líquida luz

já não posso


ser contente já não posso
se traído me quedo triste
como perdido e sem norte;
resta-me o ser forte
que na amargura se ancora

ser contente já não posso
antes bravio e amargo
por revolta da traição:
de trazer nos braços a entrega
e receber migalhas de pão

ser amigo já me doi
antes distante dos enganos;
antes resistente neste mundo
que diferente do que sou,
ser contente já não posso

Desaires...


Desaires e fronteiras ultrapassados,
pressentes que pela frente deslizarás
no caminho nem sempre liso,
até algo rugoso
até algo desesperado, desequilibrado
em perda da linha vertical.

Soluços da vida,
tropeços de rumo, desvios.

Valentia sempre, para chegar ao incerto porto.

Como um rio...


Como um rio, fluíam os dias
Como a luz que corre dos teus olhos
Como a breve sombra, como a penumbra.

Assim me calei e com pedras atormentei a língua.
Suspendi o ar do meu peito,
Vi tua figura chegando,
E vi como o teu calmo rosto me indagava os dias.

Como as águas leves sobre um leito,
Como a brisa solta de Maio.

As casas eram faces fechadas,
E estavam fechadas todas as portas das ruas.

Essa indagação me permanecia, pelas margens todas
Dos caminhos, das jornadas.

Como o ar suspendia o pensamento
Como as pedras do caminho
Como estevas secas
Como toscas palavras de boca ressequida.

Suspenso de mim o tempo
Na secura das areias.

Hotel Califórnia


Surpreendido,
pelas formas e contornos
surgidas no alto da duna.

Encandeado,
silhuetas em contra-luz
despontavam, estranhas figuras
anunciando o fim da travessia.

(Será chegada a altura de deixarmos
o nosso Hotel Califórnia?)

Agora, de transparências fúlgidas
se aproximam os tempos dos vermes de vidro,
gigantes nas águas límpidas, invisíveis.

Amanhã será o tempo de procurá-los,
dar-lhes um nome em latim
e um cativeiro ecológico.

de tarde ela...


de tarde ela não veio.

se me cerraram as pálpebras;
lentamente a música
o sonho lento me tomou,
iluminando-me de sons.

e a luz crescia, a luz cresceu,
a luz me levava, dançando na canção...

acordo num repente, de olhos luminosos,
sem saber com quem dancei, quem na luz me levou...

Ruas Calmas


Desfiando em teus segredos
levanto a sede e a sombra
percorro os fios da secura.

Invento todos os dias
o teu sorriso
oculto no ventre das tuas palavras.

Aprendo os ecos do teu silêncio
escondo os traços lentos
dos novelos abertos do meu medo

Abrimos ruas na tua pele
escuto a manhã do nosso encanto.

Levado na brisa solta
no beijo calmo dos teus cabelos.

Fuga


andar fugir espalhar a semente

criar as folhas, contornar as fugidias faces

levantar os braços erguidos no tempo

largar o fértil fulgor da anarquia,
deixar fluir na planície
dos homens as falas do entendimento.

fugir andar, espalhar a semente
purificar a água, na fonte e na face
formar a efígie perene

espalhar a corrente fugir
libertar de mim todas as palavras
retidas em perpétua sentença

Poema Devido


devido aos olhos ardentes
devido ao peso das pálpebras
devido aos declives

descendo penumbras
descendo às sombras
após o encantamento
crepuscular

deslizando colinas
relaxando músculos
tensões acumuladas

lembrando cantigas adormecidas
lembrando formigas fora do carreiro
esquecidas de seguir contrárias

de vidas furtivas fugas sentidas
dormentes raivas rangidas
entre dentes dormidas,
doridas

O Ponto Da Situação


Fazer hoje o ponto,
a chave da situação,
tanto quanto a sabemos
actual aberta ou livre,

ou queremos abrir todas as portas
da espera, a esfera da alegria
e da tristeza.

Soubemos contar
da situação real quando a cantar
os erros quisemos abrir os sonhos
- ambos necessários.

No ponto aberto das tensões
o titubear dos pulsos, das pulsões
os cuidados,
as canções

Teu Veludo


a qual pedra
sempre leve
branda pelve
no azeite liso dos dedos

firmes
graves sedas
pelas presas
das lentas pernas

a qual ponta
breve dura
das silvas
agudas

Opus Brevis


lentamente
em leves toques,
passo a passo
vou criando as tuas formas.

linha a linha
surgem os ciclos,
tocando-te as teclas
esculpindo o invisível.

guardando-te os sentidos
na tua maneira,
alegram-se os rostos
límpidos das crianças

A Visão De Vincent


como nenhuns, viram teus olhos
as metamorfoses no teu rosto marcado,
as cores de Auvers e as espirais da noite

ondulavam-te os olhos, trémulos,
pela terrível claridade das searas
e a tua mão em desesperada fuga
deslizava turbilhões coloridos

procuravas os contrastes da alma
e revias-te sempre espelhando-te
o olhar de amargor profundo

e como ninguém nos deste
- como só o teu único olhar poderia -
a ver os ciprestes ao vento
entre o deslumbramento solitários

como homens a sofrer, resistindo
à vida de pé, verticais e delicados,
solenes e agitados.

como um cipreste ondulante
foi a tua vida
a vertigem do teu olhar

A Tua Idade


tens o olhar lento e silente
com que nos fitas, de sageza
sabes que o mundo não inverte
os ciclos da natureza

apenas resistes ao tempo
e guardas a memória
as vozes mudas dos anos passados
e sabes esperar
que te venham pedir os tesouros
do futuro

parado no teu banco nos fitas
e de cima dos teus séculos
esfíngicamente respondes
"muito pouco seria
se eu inda agora
não achasse muito..."

Talvez Depois De Dormir


deixai fugir de mim os olhos
deixá-los dormir, vaguear, levando pelo espaço
as formas obscuras do silêncio

talvez depois regressem mais claros
mais seguros de trazerem sentido
para todas as coisas que ainda ontem viram

tragam a chave oculta dos mistérios

a chave do enigma
que os olhos não entendem,
em que o pensamento esbarra
trazendo a zanga,
e a vontade de fechar para balanço

ou para obras

Descartes E O Erro


à beira
no bordo da fronteira,
no limite da coragem;
à margem.

ao lado, no brado
do tempo que passa,
do pão que se amassa,
na força que se não usa,
imensa, arde a brasa
em lenta queima.

no risco,
de seda e aço
respiro e penso
no cheiro da manhã
e no canto arrisco
a rupestre palavra.

Viagem


(a Miguel Torga)


águas tépidas, claras areias
praias límpidas, de clara luz
cálidas chuvas de alegria

formas fúlgidas, breves
surgidas ao sair das pontes,
ao dobrar da curva,
fontes frígidas da serra

frescas sombras dos bosques
de maduros olores plenas,
brisas vindas do viço
das folhas dos ramos novos
ou em vôo suave de folha solta

em viagem
até que no chão da terra pouse
e o eterno sol aqueça